11.2.12

Devaneios sobre a Política dos três acordes

                               Devaneios sobre a política dos três acordes

                                                                       [...] não nos foi dado,
                                                                                                                   Descansar em parte alguma
                                                                                                                       Desaparecem, tombam
                                                                                                                           Os homens que sofrem,
                                                                                                                             Cegamente hora
                                                                                                                                   Após hora,
                                                                                                                                       Como a água lançada abaixo
                                                                                                                                            De falésia em falésia
                                                                                                                                                Anos a fio no incerto.
                                                                                                                              [ Hölderlin 6, p. 149].
J’ai parlé d’une voix qui me disait ceci et cela. Je commençais à m’accorder avec elle à cette époque, à comprendre ce qu’elle voulait. Elle ne se servait pas des mots qu’on avait appris au petit Moran, que lui à son tour avait appris à son petit. De sorte que je ne savais pas d’abord ce qu’elle voulait. Mais j’ai fini par comprendre ce language. Je l’ai compris, je le comprends, de travers peut-être .La question n’est pás là. C’est elle qui m’a dit de faire le rapport. Est-ce à dire que je suis plus libre maintenant? Je ne sais pas.” [Beckett 1 p. 241.][1]

Estou farto. Não consigo mais ficar em silêncio. Agora escreverei sobre a multiplicidade de eventos que permeia os meus pensamentos. Antes que eles escoem e se desvaneçam como a água das chuvas que percorrem os seus caminhos em tempestades de verão.
Sobre o que falar?
O tédio em relação a tudo o que me envolve?
Sobre as músicas da adolescência que não conseguem mais me satisfazer?
Mas será que o discurso sobre experiências individuais tange também outras pessoas?
Será mesmo que a linguagem utilizada exprime tudo aquilo que penso, imagino e sinto?
E, além disso, seja ela capaz de alcançar os objetos existentes para além de mim mesmo?
Magnificência ou impotência da linguagem? Há muito tempo eu tendo pra esta última.
Enfim, será que a organização da forma poderia trazer para o seio deste texto a estranheza e o choque tão querido e tão temido por tudo que fora realizado até estes dias?

Bem, é preciso começar por algum lugar. Porém, isto não significa realizar cada passo de modo cada vez mais cego. ...Lembro agora do inicio do livro de Deleuze-Guatarri sobre Kafka[2]... e como me é tão querido este livro. Pode-se até dizer que o tenho como fio condutor dos meus devaneios políticos e estéticos. Não, antes estéticos que políticos... Ele dizia, grosso modo, que a obra do escritor tcheco se lhes apresentavam como um castelo com múltiplas entradas. Entradas estas que desapareciam assim que se iniciam alguns passos no interior deste mesmo castelo. Era preciso prestar atenção... Nesta presente tarefa que já me pesa um bocado é também preciso atentar para os passos dados e a realizar.
            Agora este texto, - primeiro texto-, precisa de um tema a ser desenvolvido.
            Meu desconforto com coisas que permeiam meus últimos anos me voltam  para falar sobre Godard, Straub-Huillet, Boulez, Cage, Adams, Cézanne , Mondrian, Balzac, Zola, Mallarmé, Kafka, Proust, Joyce, Beckett. Porém, os passos iniciais talvez sejam os mais lentos e os mais arriscados. Pois, caso não interessa a ninguém, logo serei deixado de lado como maldito que sou. No entanto, não pretendo ser mais um “flautista”[3] entre tantos que existem aqui em São Paulo. Haja vista que está tatuado em minha testa este mantra cageano: seja atrativamente desinteressante...[4]
            Bem, falarei sobre assuntos que envolvem talvez pessoas da minha idade: a cena hardcore punk dos anos 1980, 1990 e 2000 nos Estados Unidos. Mais exatamente, direi algumas palavras sobre o Minor Threat,o Fugazi, a Dischord. Palavras estas que podem ser estendidas pelo leitor a todas as bandas e selos fonográficos independentes do estado paulista.
Darei a este texto o título de Devaneios sobre a política de três acordes, título este faz referencia ao  disco demo da banda  7 Seconds.
Bem, para começar, é preciso observar que este texto é um simples monólogo registrado por meio de anotações esparsas. Desse modo, ele não tem a pretensão de ser uma tese acabada. Contudo, seria muito propício a suscitar encontros possíveis...
O título deste texto pode se transformar em fio condutor daquilo que venho pensando há dias. Pois, a frase Política de três acordes traz à luz o movimento jovem ancorado em bandas de hardcore punk surgidas nos ’80 nos Estados Unidos. De modo mais preciso, esta frase se relaciona com a posição crítica de reduzir o máximo possível o material sonoro disponível com vistas à descrição implícita da escassez das vidas da juventude de então. Isto significa que a utilização de apenas três acordes na constituição das canções das bandas do hardcore punk era, segundo a perspectiva sobre a qual me apoio, solidária da tentativa de cartografar a pobre e empobrecedora rotina através da qual se organizava a vida daqueles jovens estadunidenses. Dessa forma, observa-se este estrito liame entre o escasso método de composição e o meio material e intelectual da juventude estadunidense dos anos oitenta.[5]
No entanto, esta atitude não se trata de uma ação inédita. Em alguns artistas de vanguarda, pode-se encontrar semelhante estratégia estético-politica de desmascaramento do poder.  Como observa-se em Kafka e na sua atitude de utilizar a linguagem a mais seca e pobre possibilitada pela língua alemã utilizada em Praga a fim de evidenciar, através deste remanejamento da linguagem, a situação de minoridade vivida pela Tchecoslovaquia de então perante o governo Austro-húngaro. O mesmo ocorre com Beckett, uma vez que, embora irlandês, ele se exprime através do mais rudimentar francês para fazer ver a sua condição de minoria em solo estrangeiro e a impotência da linguagem frente a descrição da realidade. Sem falar da fase musical de John Cage  constituída antes da realização da peça Music of Changes , uma vez que ali ele constitui a totalidade de seu material sonoro com todos os arranjos considerados como de segunda ordem ou mesmo lixo pela tradição musical . E, seguindo uma vez mais Deleuze-Guattari, a confecção do black-english presente na soul music e no rap americanos, visto que a sua plena compreensão só se dá para aqueles que experienciam as situações descritas nas letras. Por fim, em praias tupiniquins, observam-se semelhanças desta ação com a estratégia utilizada por Graciliano Ramos em seu livro Vidas Secas, onde ele se utiliza de um português pobre e rudimentar a fim de fazer ver pelo meio lingüístico mesmo a escassez da vida dos personagens contidos neste livro.
Mas, voltando ao ponto que interessa aqui. Este empobrecimento da linguagem musical realizado pelo hardcore punk estadunidense traz em seu bojo o teor de certa forma política.
E um dos grupos que mais se ressaltou neste cenário musical foi a banda Minor Threat. Esta banda, - composta por  Ian Mackaye (vocal) e Jeff Nelson (bateria),  Brian Baker (baixo), e Lyle Preslar (guitarra)-, destacou-se no cenário hardcore dos ’80 pelo fato de liderar, de certa forma, uma atitude contracorrente dentro do segmento musical denominado rock n’ roll. Isto porque, através de sua canção Straight Edge, esta banda  explicita na vivencia individual de seu vocalista uma ação contrária aquela praticada em geral pelos ouvintes deste segmento musical. Pois, em vez de optar pelo drogadição, bebidas alcoólicas e sexo promiscuo, o vocalista do Minor Threat, Ian MacKaye, propõe uma vivencia livre de qualquer espécie de evasão, - isto se aplica a religiões, drogas, álcool, bens produzidos pela indústria do entretenimento-, e uma atitude respeitosa frente aos demais indivíduos.
Este aspecto da banda desvela aspectos interessantes, por um lado. Ao passo que, por outro lado, este interesse possui um espaço de jogo bastante restrito.
O aspecto interessante se deve ao fato de eles notarem, segundo esta perspectiva, o fato de que estão envolvidos em um circulo de ação onde a todo momento são incitados à evasão. Isto é, o seio do dinamismo neoliberal do poder impele os indivíduos a intermitentes injeções de esperança a fim de suportarem o estado de não liberdade que transpassam todas as ações realizadas por suas vidas. E, nesta posição tomada pela banda, o mais interessante  é o fato de eles nivelarem as drogas ao álcool,- não digo que o álcool não seja uma espécie de narcótico, mas sim que sempre fora uma constante por parte dos ouvintes e das bandas de rock e de outros gêneros a utilização da bebida alcoólica como signo de liberdade e maioridade. Este aspecto desperta interesse, por isso. Estes dois objetos são repudiados, na medida em que são somente uma ferramenta a mais para imolar  facilmente  o estado de coisas existentes. E isto traz em sua esteira uma certa maturidade, pois esta identidade, - do álcool, das drogas, da religião, dos demais produtos produzidos com vistas à evasão-, implica uma posição de contestação geral perante o que os cerca. Ou seja, observa-se aí esboços de uma concepção de ação política onde o ponto principal é o atentar para o que está na epiderme de tudo o que atinge o corpo dos indivíduos. Sejam os produtos consumidos, os realizados, as políticas inerentes a esses produtos, etc.
Além disso, a defesa de relações não - promiscuas com os seus pares reflete uma compreensão fraterna de respeito perante as demais pessoas. Haja vista que, tanto no seu lado sexual quanto intelectual, esta posição faz ver que a mesma logística de produção de bens evasivos presente no seio do sistema capitalista neoliberal afeta as relações interpessoais. Pois, a compreensão de que o outro se constitui apenas como uma massa inerte destinada ao prazer individual de um lado da relação, - ou também de ambos os lados-,  descortina este desconhecimento e esquecimento de si asseverado pelo investimento do corpo humano por parte de nossa sociedade. Esta certa fraternidade proposta como outra via a este estranhamento existente entre as pessoas permite observar que as canções do MinorThreat não são tão ingênuas quanto o são outras bandas que se utilizam do mesmo tom agressivo utilizado por  Ian MacKaye.
No entanto, ao chegar-se aos 25, percebe-se que se demorar ainda em algumas coisas, é como o adulto entretido com jogos infantis, como diria Hölderlin. Assim, direi, segundo a  perspectiva tomada por este trabalho, a razão de estes aspectos observados nesta banda, - e por extensão, em outras bandas também-, terem uma limitação claramente visível.
O primeiro ponto sobre o que se discorrerá se refere à questão da linguagem. Pois, percebe-se que  a linguagem não se trata apenas de uma via de comunicação. E sim de uma veiculação de palavras de ordem. Com efeito, a constituição de frases e orações, além de descrever um estado de coisas presente no mundo, traz consigo a calcificação e a internalizarão dos eventos descritos pelo interlocutor. Como Deleuze-Guatarri desvelam claramente na seguinte passagem:
 “A professora de escola não informa quando ela interroga um aluno, da mesma forma que ela não informa quando ela ensina uma regra de gramática ou de calculo.  Ela ”ensina”, ela dá ordens, ela comanda. Os comandos do professor não são exteriores ao que ele nos ensina e não se acrescentam a este ensino.Eles não decorrem de significações primeiras, eles não são a conseqüência de informações: a ordem se direciona sempre e já sobre ordens, isso porque a ordem é redundante. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duplas da gramática ( maculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito de enunciado- sujeito de enunciação, etc.).  A unidade elementar da linguagem,  – o enunciado- , é a palavra de ordem. Antes que o sentido comum, faculdade esta que centralizaria as informações, é necessário definir uma abominável faculdade que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para ser acreditada, mas para obedecer e fazer obedecer.” [ Deleuze 5, p. 95-96][6]
Ou seja, utilizar-se da linguagem para realizar a descrição de um evento qualquer, traz consigo problemas relevantes. Pois, não se trata apenas do relato de um fato, ou, como no exemplo acima, a explicação de uma regra importante de determinada matéria, mas sim da imposição ao interlocutor de um modo de organização de elementos léxicos e reais que este precisa assimilar. E isto não é valido apenas na utilização de orações imperativas, mas sim em toda e qualquer circunstância da utilização corrente da linguagem. Pois, a linguagem surge, segundo esta perspectiva de Deleuze e Guattari, como um mapa. Ela expõe uma cartografia da realidade, a qual é preciso compreender a sua organização para a compreensão do liame que constitui os dados que ela pretende retratar. E isto traz consigo a questão da duplicidade da linguagem, - ponto ao qual visam o projeto de Deleuze e Guattari mas sobre o qual não me deterei-. Haja vista que se há uma organização sintática que cartografa uma organização social vigente, e, conversamente-, isto é, uma organização social que impele uma certa organização sintática-, é-se levado à aceitação de ambos os regimes de padronização ao se embarcar nesta obediência requerida pela linguagem desde os primeiros anos da alfabetização escolar. Deste modo, “em toda palavra de ordem, mesmo de um pai a seu filho, há uma pequena sentença de morte- um Veredito, dizia Kafka”[7].
E isto também vale para o que se desenvolvia acima. Pois, nas letras das canções do Minor Threat é claro a utilização da primeira pessoa por parte do sujeito de enunciação para a descrição da situação vivenciada pelos jovens do circulo de ouvintes do hardcore punk estadunidense.
No entanto, a confecção de letras onde a linguagem é tomada em primeira pessoa, - ou mesmo na terceira pessoa-, implica a repetição mecânica das mesmas construções sintáticas pelos ouvintes. Ou seja, as construções sintáticas e os eventos de coisas que elas descrevem são internalizadas pelos ouvintes, os fazendo repeti-las. Haja vista que estas construções narram situações vivenciadas pelos ouvintes, estes se identificam com estas descrições e com os estado de coisas que elas descrevem. Ou seja, estes ouvintes aproximam-se de tais canções porque elas retratam as suas dores, mas não porque elas incitam uma mudança por parte do ouvinte, a qual era a intenção primeira de seu compositor. Realiza-se, assim, uma espécie de identificação, e, por conseguinte, evasão, semelhante às canções realizadas pelas bandas do setor major da indústria musical[8].
Outro ponto se refere à extensão destas mesmas canções. Pois elas se desvelam, como traço principal deste setor do rock n’ roll, curtas e rápidas. Isto soa para muitas pessoas como um aspecto relevante, na medida me que, além de se assemelhar a uma “sapatada na orelha”, ela diz de modo direto o que tem e quer dizer.
Não obstante, é interessante atentar que o que marca a troca de informações na sociedade pós o “Essa é a única alternativa” de M. Thatcher é a extrema velocidade da comunicação e a precariedade da qualidade que elas transmitem. Ou seja, já faz parte do sistema em que vivemos esta rapidez na comunicação, haja vista que, em qualquer relação que se mantém, é-se obrigado a informar no tempo o mais curto as razões de estar-se requerendo determinado serviço. Logo, vê-se que esta especificidade constituída pela velocidade do tempo musical não é completamente transgressora quanto a alguns parece ser. Além disso, este curto tempo de duração das canções se alia ao fato de elas não se aprofundarem. Isto significa que elas dizem o que dizem, mas não há nada ali a partir do que se poderia arrancar coisas para além de sua superfície pálida.
O último ponto é a música ela mesma. Bem, não se poderia fugir de esboços de análise sobre a música, ou se se quiser, sobre a organização do material sonoro. E, este tema traz consigo a tematização do selo fonográfico criado por Ian Mckaye, a saber: a Dischord Records.
Esta observação deve ter o seu lugar aqui, na medida em que ao se refletir sobre a disposição do material sonoro, - não só das canções do Minor Threat, senão de praticamente todos os grupos pertencentes à chamada indústria do entretenimento-, observa-se que ela não transgride a organização da linguagem produzida pelos setores conservadores da música. Pois, explicita-se a partir das músicas do Minor que, embora elas sejam distantes das convencionais canções dos círculos majors do setor fonográfico da cultura mundial, elas se estruturam ainda por uma composição orientada pela semelhança entre as notas musicais características do tonalismo.
E, com vistas a explicar estes aspectos, precisa-se voltar os olhos ao texto denominado  A autonomia e emanicipação na musica de John Cage escrito por este autor. Ali lê-se que o tonalismo ou o sistema tonal “se alicerça principalmente sobre o esquema consonância-dissonância e sobre a audição requerida por ele. Este esquema organiza o material sonoro, na medida em que apresenta a resolução de conflitos previamente registrados no desenvolvimento das peças musicais. Ou seja, - circunscrevendo a atenção sobre a audição requerida por este método de organização da forma musical-, o esquema consonância-dissonância articula as totalidades sonoras, na medida em que exige da parte do ouvinte uma audição baseada na rememoração e na expectativa. Isto significa que ele exige a dupla relação do ouvinte com o aspecto temporal das obras. Pois, a linguagem tonal impele o ouvinte a esperar a resolução (consonância) de conflitos (dissonância) após a constatação da presença destes na peça. É necessário, assim, que o ouvinte possa reaver na memória a dissonância exposta em um momento anterior da peça e, a partir deste instante, esperar que este conflito se dissolva nos momentos seguintes da mesma peça.
Porém, por outro lado, este esquema ordenador do material sonoro entrou em colapso no inicio do século XX, na medida em que, como bem salientou Theodor Adorno, o sistema tonal se convertera em segunda natureza [Adorno 1,p. 19]. Com isto, o filósofo frankfurtiano diz que um parâmetro de ordenação de totalidades sonoras, - que fora construído em certo estágio da história universal-, fora tomado como o mais necessário e viável para a música. Ou seja, se se lembrar que “segunda natureza” diz respeito ao fato de o homem construir necessidades artificiais, que se tornam naturais ao longo de seu desenvolvimento por não se conseguir retirá-las, a tonalidade explicita também este fato. Pois, esta necessidade do sistema tonal reside na maneira segundo a qual este método tornou possível a assimilação mais fácil por parte dos ouvintes da progressão harmônica das obras. No entanto, o aspecto necessário da linguagem tonal oblitera a historicidade de sua constituição, de modo a torná-la universalmente válida. Ou seja, esquece-se que o seu parâmetro de organização se funda sobre as possibilidades de ordenação do material musical existentes em uma determinada época histórica e, através deste esquecimento, ampliamos o seu uso como legitimo para todas as épocas e lugares. Em uma palavra, a linguagem tonal se converte em ideologia, uma vez que ela bloqueia o advento de novos parâmetros organizacionais da forma musical através de sua falsa universalidade.” [ Cauã 3, p. 2-3]
E, além disso, o sistema tonal se apresenta como subsumido às qualidades naturais dos sons, na medida em que dispõe as totalidades sonoras através da semelhança física de cada nota música. Isto significa que “embora o sistema tonal tenha como traço fundamental a música absoluta, isto é, o fato de a forma musical do tonalismo ser erigida através da independência desta música a textos, funções cultuais e pedagógicas-, há ainda presente nela um resquício de sua dependência da natureza. Pois, uma vez que, sob o regime tonal, a composição se move através das características da natureza física dos sons, o sistema tonal ainda é marcado pela existência de um liame que o une à natureza exterior. Ou seja, a linguagem tonal ortoga apenas uma semi-autonomia à forma musical, visto que a constituição do material sonoro se realiza por este método através de um elemento extra musical, a saber: a semelhança e proximidade da natureza física dos sons.” [ Cauã 3, p. 7]

Isto leva a observar que, embora o Minor Threat, - e outras bandas que são consideradas mais agressivas e politizadas que eles, como Crass, Napalm Death, Catharsis, Discharge, Anti-Cimex, Vorkriegsjugend-, possa apresentar canções que se distinguem dos meios convencionais da major music, eles ainda não a transcendem. Ou seja, eles permanecem no seio da mesma música de entretenimento como as bandas as mais escrotas da segunda metade do XXe. Haja vista que eles utilizam a mesma linguagem calcificada do tonalismo para apresentar a sua perspectiva política perante a sociedade. Portanto, através destas linhas, pode-se compreender que muito raramente um grupo guiado por este método de composição ultrapassado poderia se designar como efetivamente transgressor da estrutura presente no mundo.
            Este fato traz em seu bojo algumas palavras sobre a Dischord Records. E um pouco de história também.
            A Dischord nasce a partir da separação do Teen Idles[9]. Isto porque com o dinheiro ganho com as 35 apresentações deste grupo, - composto por Ian Mckaye, Jeff Nelson, Nathan Strejeck e Geordie Grindlei-, eles resolvem lançar um LP desta banda. Porém, eles não encontraram qualquer selo fonográfico que se interessasse a realizar o disco de uma banda que já encontrara o seu termo. A partir daí, eles pedem a ajuda de um amigo próximo que trabalhava em um selo independente, com vistas a este ensiná-los o processo de produção e confecção de um LP. Este amigo, - Skip Groff- , explica a eles todos os passos necessários para este objetivo. E, por fim, em dezembro de 1980, o ep do Teen Idles contendo 8 canções e denominado Minor Disturbance surge. Assim, dá-se a primeira gravação e o surgimento da Dischord Records.
            E, nas palavras de Mackaye:
            “Na época, o que levou a propor uma gravação juntos é que havia muita atividade na jovem cena do punk de D. C. Jeff e eu começamos uma nova banda, o Minor Threat, e eu de baixista me tornei vocalista. Henry, o roadie do Teen Idles, começou o S. O. A. John Stabb tinha aparecido na cena e estava tocando com uma banda que se tornaria o Governmet Issue. Nathan, o vocalista do Teen Idles, estava trabalhando em uma nova banda que se tornaria Youth Brigade. Os Untouchables, a banda do meu irmão, ainda estava tocando e havia  noticias de outras pequenas apresentações  de jovens punk rockers que formavam as suas próprias bandas. Foi decidido que se nós conseguíssemos vender um número suficiente de discos do Teen idles para ter algum retorno de dinheiro, nós o usaríamos para lançar os discos dessas outras bandas. Eu estava realmente inspirado pelo selo Dangerhouse Records, que tinha lançado uma série de singles das bandas punks de Los Angeles e queria tentar fazer algo similar com a Dischord.”[10]
            Além destas informações importantes, é interessante observar que a sede do selo fonográfico liderado principalmente por Mackaye e Nelson se localiza no porão da casa dos pais do primeiro. Porão este constantemente freqüentado por integrantes de diferentes bandas cujos discos foram lançados pela Dischord e também por amigos que se identificavam com a ética do faça você mesmo asseverado pelo selo. Esta população presente na casa de Ian também colaborava empacotando e colocando as folhas com as letras das canções dentro dos encartes dos discos.
            De 1982 ao final desta mesma década, a Dischord lança inúmeras bandas, tais como: Faith, Void, Scream, Marginal Man, Minor Threat, Rites of Spring, Soulside, Gray Matter, Kingface, Beefeater, Mission Impossible, Fire Party, Dag Nasty, Embrace, Shudder to Think, Three,Jawbox, One Last Wish, Lungfish, Nation of Ulysses, Holy Rollers, Fidelity Jones, Ignition,The High Back Chairs, Severin e Fugazi. E, dos anos 90 à primeira década do século XXI, ela continuou lançando bandas através da política característica deste selo fonográfico,- isto é, fazer tudo o que tem de necessário para o lançamento de um disco, mas de modo completamente independente. Porém, algo mudou nestas novas bandas, visto que elas surgiram, não mais como carro-chefe de um movimento musical, senão como bandas surgidas e crescidas a partir das influencia daqueles primeiros grupos.
            Cabe aqui, por fim, uma última palavra sobre as bases fundamentais da Dischord Records. Haja vista que, em dezembro de 2011, ela trouxe, mais uma vez, uma novidade interessante que de certo modo subverte a maneira usual de baixar discos pela internet.
            De fato, no último ano, este selo divulgou a possibilidade de baixar aproximadamente 1000 apresentações realizadas pela famosa banda Fugazi, - composta por Ian MacKaye(Guitarra e vocal), Guy Picciotto(Guitarra e Vocal), Joe Lally(Baixo), Brendan Canty(Bateria)-, ao longo de seu período de atividade ( 1989-2002). Não obstante, o que destaca-se nesta divulgação é de qual forma pode-se realizar o pagamento destes downloads. Pois, como é fato conhecido, a banda Fugazi se tornou um dos grupos mais respeitados de toda a cena independente dos Estados Unidos, na medida em que realizou até o seu limite a ética do faça você mesmo proferido pela Dischord e pelas bandas que inicialmente a constituem. Isto porque, além de alugarem eles mesmos os espaços para as suas apresentações, estabeleceram limites nos preços dos ingressos destas apresentações e de seus discos gravados, controlarem desde o material impresso nestes discos até os cartazes de divulgação dos shows, dirigirem eles mesmos a van com seus instrumentos para os locais onde ocorreriam estas apresentações e, por fim, incentivarem um comportamento pacífico dos ouvintes nos shows,- isto é, a intolerância a qualquer manifestação de violência que pudesse agredir outras pessoas presentes no local-, eles possibilitaram por meio do site da Dischord o download das apresentações do Fugazi através do pagamento de um valor sugerido pelo fã. Ou seja, é permitido àqueles que se interessam por alguma destas 1000 apresentações, a aquisição da mídia por qualquer quantia que este interessado se proponha. Para isso, exige-se apenas a explicação sobre o valor indicado pelo consumidor.
            Isto se apresenta como um aspecto positivo da Dischord. Pois, nestes 30 anos, este selo erigido para a gravação de um disco de uma banda já inexistente persiste heroicamente sobre os fundamentos de seu pensamento político, a saber: disponibilizar o material de diferentes bandas visando não o lucro extraordinário, senão as condições mínimas e possíveis para a divulgação de outras bandas. E isto deve ser elogiado e aplaudido de pé por todos aqueles que reconhecem a dificuldade deste empreendimento. Haja vista que, as majors gravadoras possuem todos os recursos para bombardear o seu catalogo em  quase completamente todos os cinco continentes através de seus investimentos em divulgação televisiva, radiofônica, e de internet. A Dischord, ao contrário, se vale apenas do interesse de novos ouvintes e pela transmissão tête-à-tête/ redes sociais de suas bandas.
            Contudo, os elogios contidos neste texto se dirigem a estes aspectos relacionados à dificuldade de divulgação, a não interferência nas opções adotadas pelos grupos que a constituem e a firmeza de suas propostas, - uma vez que nossa geração assiste ao processo de domesticação de todas as formas subversivas presentes no mundo-,mas não a uma suposta transgressão completa que ela teria realizado no setor fonográfico do mercado mundial. Pois, embora a Dischord sustente esta micropolítica perante a gigantesca indústria do entretenimento, em nenhum momento as bandas de seu catalogo realizam uma ruptura com aquela linguagem musical presentes nas majors. Com efeito, observa-se, por meio de olhar detido sobre as criações de suas bandas, e principalmente sobre o Fugazi,  que a Dischord não fora capaz de incentivar uma superação dos limites da música enquanto mercadoria destinada à evasão. Isto significa que a total liberdade que um selo fonográfico poderia permitir a uma banda não atingiu um nível em cujo seio seria questionado não só as relações capitalistas de apresentação, divulgação e gravação, mas também, - e principalmente-, a própria constituição da linguagem musical.
            E este fato é de suma importância.Pois, através da transgressão da linguagem tonal sedimentada e veiculada como única possível pela industria do entretenimento, poder-se-ia trazer para o centro de debates políticos presentes nas ações da Dischord e do Fugazi um choque criativo propício à constituição de linhas de fuga possíveis ao estado de coisas presentes.
            No entanto, a não realização desta transgressão tão radical  é facilmente compreensível. Posto que é claro que, caso houvesse a realização de canções extremamente diferentes daquelas produzidas pelas bandas conhecidas dos jovens ouvintes do segmento hardcore punk dos anos 80, isto produziria a indiferença frente a estas canções e, conseqüentemente, a possível falência do selo de Mckaye e de Nelson.Portanto, a manutenção de temas  e estruturas musicais semelhantes pode ser vista como estratégia para cultivar um número estável de ouvintes a cada nova fronteira nacional rompida pela micro divulgação do catálogo de bandas da Dischord.
            Deste modo, um balanço daquilo que fora realizado pelo Minor Threat, a Dischord e o Fugazi é que eles subverteram uma sólida estrutura há tempos erigida pela indústria de entretenimento. E esta subversão merece o brilho nos olhos de todos os garotos que compreendem a dificuldade desta ação e de sua manutenção por tanto tempo. Entretanto, - e, novamente, a conjunção adversativa-, esta subversão poderia ser maior e mais profunda, caso eles conseguissem romper também os liames sintáticos presentes na tradição musical estabelecida em meados do século XVIII e ainda mantida como naturais por 99% daquilo que se faz nos nossos tempos. E, aqui, chega-se ao fim desta tentativa de olhar  para os inícios de nossa formação musical tendo como pedra de toque esta passagem de S. Mallarmé:

                “A atitude do poeta em uma época como esta, onde ele está em greve perante a sociedade é por de lado todos os meios viciados que se possam oferecer a ele. Tudo o que se lhe pode propor é inferior à sua concepção e ao seu trabalho secreto.” [11]


                Bibliografia

1.      Beckett, Samuel, Molloy. Les Éditions de Minuit, Paris, 1982.
2.      Cage, John. Silence. Wesleyan University Press: Connecticut,1961.
3.  Cauã.  A autonomia e emanicipação na musica de John Cage. Texto apresentado como trabalho de final de semestre no Departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
4.    Deleuze, Gilles et Guattari, Felix: Kafka Por Une Literature Mineure. Les Éditions de Minuit, Paris, 1975.
5.    Deleuze, Gilles et Guattari, Felix:Mille Plateaux. Les Éditions de Minuit: Paris, 1980.
6.    Hölderlin, Friedrich: Hipérion ou O Eremita da Grécia. Nova Alexandria: São Paulo, 2003.
7.    Mallarmé, Stéphane. Mallarmé. Trad. Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Capos. Editora Perspectiva: São Paulo, 1991.
8.    Proust, Marcel. À l’ombre dês jeunes filles em fleurs in À La Recherche Du Temps Perdu II. Éditions Gallimard: Paris, 1988.
               


[1] “Eu falei com uma voz que me dizia isto e aquilo. Eu começava a me adequar a ela nessa época, a compreender o que ela queria. Ela não se servia das palavras que tinham ensinado ao pequeno Moran, que ele por sua vez tinha ensinado a seu filho. De sorte que eu não sabia o que ela inicialmente queria. Mas, eu acabei por compreender essa linguagem. Eu a compreendi, eu a compreendo, de viés talvez. A questão não está aí. É ela que me diz para fazer o relato. Isto significa que eu sou mais livre agora? Eu não sei.” [ Esta e as demais traduções deste texto foram realizadas por seu autor].
[2] Deleuze 4.
[3] Retiro este termo de uma passagem de À lómbre dês jeunes filles em fleurs da La Recherche Du temps perdu de Proust 8, p. 41.
[4] Cage 2, p. 64.
[5] Lembro aqui de uma descrição dos fatos de então feita pelo vocalista da banda Circle Jerks, Keith Morris, no documentário American Hardcore: "Eu trabalho de segunda à sexta. E chega sexta à noite e eu só quero me desligar. Odeio meu chefe, odeio as pessoas que trabalham comigo, odeio meus pais, odeio todas estas figuras autoritárias, odeio políticos, odeio os governantes, odeio a polícia. Você sabe, todo mundo aponta o dedo na minha cara. Todo mundo fica me enchendo. Todo mundo fica me zuando. E agora eu tenho a chance de estar com pessoas como eu e eu tenho a chance de me desligar. E era basicamente isso".
[6]  “ La maîtresse d’école ne s’informe pas quand ellle interroge um élève, pas plus qu’elle n’informe quand elle enseigne une règle de grammaire ou de calcul. Elle “ensigne”, elle donne des ordres, elle commande. Les commandements du professeur ne sont pas extérieurs à ce qu’il nous apprend, et ne s’y ajoutent pas. Ils ne découlent pas de significations premières, ils ne sont pas la consequence d’informations: l’ordre porte toujours et déjà sur des orders, ce pourquoi l’ordre est redondance. La machine de l’enseignement obligatoire ne communique pas  des informations, mais impose à l’enfant des coordonnées sémiotiques avec toutes les bases duelles de la grammaire ( maculin- feminine, singulier-pluriel, substantive-verbe, sujet d’énoncé-sujet d’énonciation, etc.) . L’unité élémentaire du language – l’énoncé-, c’est le mot d’ordre. Plutôt que le sens commum, faculté qui centraliserait les informations, Il fault definir une abominable faculté qui consiste à émettre, recevoir et transmettre les mots d’ordre. Le language n’est même fait pour être cru, mais pour obéir et faire obéir.”
[7]  “ Dans tout mot d’ordre, même d’um père à son fils, il y a une petite sentence de mort – um Verdict, disait Kafka”. [ Deleuze Guattari 5, p. 96]
[8] E, é interessante atentar que, no documentário das apresentações do Fugazi, - uma das maiores e importantes bandas integradas também por Ian Mackaye-, este assevera diversas vezes que já não iria dizer as pessoas o que elas deveriam fazer de suas vidas.
[9] Banda que precede a formação do Minor Threat, uma vez que já conta com Ian Mckaye e Jeff Nelson , integrantes também do Minor.
[10] Site:  www.dischordrecords.com
[11] Mallarmé 7, p. 27.